segunda-feira, 30 de agosto de 2010

tear


não que seja a madrugada
preâmbulo do dia

tampouco réquiem ou epitáfio
de amor inacabado

mas um tempo que se arrasta
como se caminhassem
os ponteiros
ao avesso

não que sejas a razão da
minha insônia
ou que palpite o coração
ensandecido
a qualquer tênue recordação
de ti

(tenho-as tantas)

apenas fazes-me falta

e entornas essa tua ausência
imensamente calma

entre a cama e a janela
sobre o poema

onde desfio fio a fio a madrugada



Márcia Maia


sábado, 28 de agosto de 2010

anteflorir



porque as tardes azulecem
há um breve despertar das
cicatrizes —
flores bizarras em jardins
de pele e sangue —
se antecipando à primavera
confirmando que em agosto
é sempre inverno
mesmo quando travestido de verão



Márcia Maia


quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Heresia


Desde criança ria ao rezar o Pai Nosso. Quando chegava ao não nos deixeis cair em tentação, desatava a rir. De nada adiantaram os pedidos da mãe. Tampouco os da avó. Menos ainda os do pároco que, cansado daquela heresia, expulsou-a da igreja quando desatou a rir em pleno dia da primeira comunhão. Para vergonha eterna da família. Exceto do pai. O pai nada dizia. Mas ria baixinho pra mãe não perceber. E sempre pulava aquela parte nas raras vezes em que rezava.
Assim, de riso em riso, cresceu sem nunca se propor a não cair em tentação. Caía sempre. E era feliz.
Pensava nisso agora, ao ouvir o recado dele na secretária eletrônica, marcando para encontrá-la no dia seguinte. Três e meia da tarde? Que hora horrível, pensou, já imaginando a desculpa que daria para sair cedo do trabalho. Médico? Dentista? Doença na família? Não, já tinha adoecido todo mundo, não dava mais. Quem sabe uma enxaqueca? Ou uma terrível cólica menstrual? Riu. Depois decidiria. O certo é que por nada nesse mundo, deixaria de encontrá-lo. Cairia em tentação uma vez mais. E, mais uma vez, seria feliz. Amanhã, como ontem e para sempre. Amém.



Márcia Maia


domingo, 22 de agosto de 2010

sem backup


apertar um botão e apagar-te
em título e subtítulo
linha a linha

até que te restes pouco mais
que em nem escritas
entrelinhas

criptografadas em um arquivo
obscuro de um lugar
chamado cache

de onde hei deletar-te quando
o tempo nem pretérito
nem futuro

fizer-te memória imprestável de
um sentir envilecido
nem amor

nem mágoa nem nada que ouse
em descompasso dizer-
se saudade



Márcia Maia


terça-feira, 17 de agosto de 2010

a day in a life


flávio machado©




















as portas todas abertas
e a mesma escuridão por sob os olhos

inútil acender luzes e velas
inútil por demais arregalá-los

                 (
     apenumbrapersiste
          adensa-se
            insiste
                 )

melhor talvez tentar um baseado



Márcia Maia

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Quarto-crescente


A bem da verdade, já não era sexta-feira e sim, madrugada de sábado. Fazia calor, o rio exalava um cheiro acre, e naquele bar, onde quase todos se conheciam, ele, que a poucos conhecia, tocava.
Não era bonito. Camisa em desalinho, sem gravata, calça social, sapato horrível, paletó esquecido numa cadeira qualquer. Viera de um casamento. E tocava como um deus. Um deus tropical, trôpego e lascivo, com olhos de anjo, boca e mãos de cafajeste.
À saída, beijou-a sem pedir licença. Longamente. A ela, que não o conhecia. Depois, olhou-a nos olhos e disse que tanto a esperara. Ela riu. Conversa fiada, pensou. Nada disse. Deixou que a beijasse de novo antes de partir.
Amanhecera. O calor aumentara. O hálito do rio sossegara. Os amigos se entreolhavam. Ninguém entendera nada. Nem ela. Mas os dias nunca mais foram banais como antes.



Márcia Maia


terça-feira, 10 de agosto de 2010

mergulho


no espaço exígüo
entre teus olhos e o sol
da tarde que se vai

pereço
afogo-me

a mim não me foi dado
saber nadar em águas rasas



Márcia Maia


domingo, 8 de agosto de 2010

A Visita





















Depois de subornar três serafins, todo um batalhão de anjos, dois arcanjos e um membro da alta hierarquia celeste, cujo nome, por razões óbvias, não pode ser revelado, finalmente ultrapassou os portões. Que portões? Do céu, elísio, paraíso, nirvana, como quiserem chamar. Que dá tudo no mesmo.
Estranhou no início a falta de vigilância. A sensação de liberdade, mesmo parcial, foi como um vento novo, uma brisa. Tinha apenas quatro horas. Depois de tantos anos, quatro horas! Mas, trato é trato. E este lhe custara caro.
Voltara para ver os filhos. Crescidos já. Um presente que se dava nesse dia. Dos pais. Encontrou-os reunidos em torno da mesa do jantar. Seis. Os filhos dos seus filhos. Quatorze. Seus netos. E as filhas do filho da sua filha: suas bisnetas, tão pequenas, ainda.
Ouviu conversas e risos. Pouco entendeu. Perscrutou suas faces. Os olhos, as bocas, as rugas. Os fios embranquecidos nos cabelos. Os risos. As vozes. Os gestos. Procurou vislumbrar-lhes a alma. Os traços de dor e alegria. Os medos. Os sonhos.
Depois, concentrou-se nos netos. Buscando em cada um a imagem que tinha de seus pais e mães pequenos, crianças ainda. Como eram quando partira. A contragosto, partira, evidentemente.
Súbito, deu-se conta de que, agora, seus filhos estavam, todos, mais velhos do que ele, o pai. Passara o tempo para eles. E se esgotava o seu. Hora de retornar.
Beijou cada um, filhos, netos e bisnetas, sem que o percebessem. Mas, cada um, de repente, sentiu vontade de falar do pai. Que partira há tanto. Do avô. Que não conhecera. Como um lampejo de saudade.
Terminado o jantar, despediram-se rindo e partiram. Ele, inclusive. Antes que para sempre lhe fossem fechados os portões. Do elísio, céu, nirvana, paraíso. O nome que lhe queiram dar.



Márcia Maia

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

quase um largo

kimimasa mayama ©















às oito e quarenta e um
a luz se fez
e cento e quarenta mil
num instante se apagaram

dois dias depois
repetiu-se o macabro espetáculo

(

                                             
                                              
                                               )


hoje o mundo pouco
lembra hiroshima

e há muito esqueceu de nagasaki



Márcia Maia

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

um corte


só de silêncio feito

sem sangue
ou faca



Márcia Maia


terça-feira, 3 de agosto de 2010

as afinidades eletivas



detalhes ínfimos. delicadezas quase-desapercebidas. calma e silêncio meio ao rumor mais denso. quietude de pôr-do-sol ao meio-dia. de isca de lua quando no céu a lua é cheia. um quê de bruma que cintila. e soma. sempre. inesperada e inexplicavelmente.



Márcia Maia