quinta-feira, 30 de setembro de 2010

um poema à hora do almoço


um poema à hora do almoço
tecido em pensamento

sem caneta
teclado
guardanapo

um poema de sentir saudade
germinado entre folhas

de alface
hortelã
manjericão

diluído em burburinho
(afinal é hora do almoço)

na fumaça
de automóveis
e cigarros

é provável que se perca rápida
e definitivamente

entre a conta
e o último
gole do café

pois para que serve um poema
de saudade

(escrito
em pensamento
à hora do almoço)

senão para perturbar o apetite e
o coração



Márcia Maia


domingo, 26 de setembro de 2010



diego rivera: tina na terra virgem.        foto: tina modotti©



















Nasci pássaro e peixe
e tigre e cisne
e gazela.
Nasci água e correnteza
e música e ventania.
Nasci outono e primavera
amanhecer e lua cheia.
Nasci mar do mar
maré que vai
e vem.

Cortaram-me asas, secaram-me
rios.
Invisíveis grades e aquários
me enclausuraram.
A alma, esvaziaram-me em
invernos desertos
cegos de lua, sedentos de mar.

O espectro de mim em que
me tornei
nutre-se da música oculta
no silêncio.

Emudecido o silêncio
nada restará:
pássaro, tigre ou gazela.
Tampouco eu.
Só ausência
e quem sabe, paz.



Márcia Maia



sexta-feira, 24 de setembro de 2010

flagrante





             enquanto na vitrola
                  stormy weather
             na rua me espreita
             a lua
             quase tão só e tão
             nua
                         quanto eu



             Márcia Maia

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

nova mitologia


milton montenegro©



















sem rumo
avesso a novos caminhos
perde-se em antigos labirintos
enquanto perfeitamente atualizado
liberto de complexos e mitos
o minotauro convida-me
para jantar

(e eu exausta de idas e vindas
aceito sem pestanejar)



Márcia Maia

domingo, 19 de setembro de 2010

um dia esplêndido


nana canta chico na vitrola
ao som dos sinos de ventos

um cheiro de feijão e carne
assada escapa da cozinha

há bons livros nas estantes
flores sobre a mesa

e um gato imaginário
dormita preguiçoso no sofá

por que então me aflige
a mudez contumaz do telefone

meio ao cantar sem fim
dos passarinhos



Márcia Maia

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Manhã de vento e frio em Copacabana






















Domingo de maio, azul e ventoso, mar agitado, em Copacabana. Manhãzinha, caminhava pela calçada, quase vazia. Sozinha. Pensando nas coisas da vida. Na vida como ela é. Na falta de Nélson Rodrigues, em silêncio, sentei ao lado de Drummond. De costas para a avenida, de frente para o imenso mar.
O mar sempre me fascina e apazigua, sem sentir, disse em voz alta. Ainda mais agora, com tantos amigos que vez em quando, do outro lado, à beira-dele se sentam e, com carinho, me buscam, me olham.
De onde você é? me perguntou, sorrindo, o poeta. E eu, me perguntei qual foi a última vez que vi uma estátua sorrir. Talvez tenha sido Adriano, ou Atena, não em Roma nem na Grécia, mas no Louvre, em Paris.
Do Recife, respondi.
— Poetisa, decerto. Ou prefere que eu diga poeta, como agora se usa dizer?
— Prefiro poetisa, sem ofender a língua, embora a palavra poeta soe muito mais bonita. Mas, a bem da verdade, sou médica.
Ele riu. E eu me aconcheguei um pouco mais, no casaco azul, de linha fina que mal me protege do frio.
— E os seus poemas, quem os escreve? A médica?
Touché, pensei, sem querer dar o braço a torcer.
— Com certeza. Pois que a médica e a poetisa não são uma única pessoa?
Touché, ele respondeu, como se me lesse o pensamento.
E ficamos os dois em silêncio. Ele olhando para a avenida e eu com os olhos molhados de tanto mar.
Que diabos estava fazendo ali, sozinha, num domingo de manhã, conversando com uma estátua? Tudo bem que era a estátua de um poeta, mas ainda assim, uma estátua. Será que a solidão se me chegara a tal ponto? E o vento soprou mais frio.
— Posso lhe perguntar uma coisa? A voz do poeta me roubou aos pensamentos.
— Certamente. O que quiser.
— Tem algum poema meu que toque fundo o seu coração, que esteja entre os seus preferidos?
Pronto! Era só o que me faltava! Por que tinha que parar e me sentar ao lado dele? Não podia ter seguido meu caminho, com um simples Bom dia, Drummond, ou ainda sem nada falar? Mas não, tinha que sentar, procurando sarna para me coçar. Tinha encontrado. E agora, que diria? Nunca fui muito fã da sua poesia, poucos poemas seus me comovem e não lembro de nenhum? Mas, se serve de consolo, é-me exatamente assim a poesia de Pessoa? Nem morta!
Ele me olhava, com um esboço de sorriso no olhar, por trás dos óculos, como se me adivinhasse o pensamento.
— Não lembra nenhum? Ou não gosta de nenhum?
Ele riu e eu pensei que detesto estátuas falantes.
— Não é que não goste, é que, sinceramente, conheço pouco a sua poesia. E assim, de supetão, só consigo lembrar dos mais comuns, de José e o da pedra, que não são meus preferidos e dos quais você já deve estar um pouco saturado.
Ele riu alto, como nunca pensei que riria. Aliás, nunca pensei que ele risse. Nem em vida.
— Boa saída pela tangente. Além de poetisa e médica, vai ver, você é geminiana.
Foi minha vez de rir. Alto e bom som.
— Sou, sim. Então...
— Então?
— Então, melhor deixar de bobagem e falar claro.
— Muito melhor, com certeza.
— É que realmente conheço pouco a sua poesia. Conheço muito melhor a do seu amigo Emílio Moura. Ela me fala mais perto, como se me lesse. Ao contrário da sua, que, desculpe a franqueza, quase sempre pouco me diz.
Ele me olhou com carinho, pôs a mão sobre a minha e disse:
— Não há o que desculpar. Eu sempre disse que Emílio era o maior poeta das Geraes. E a Poesia é assim, tem muitas vozes. Uma para cada poeta. Uma para cada leitor. E como dizia o Nélson, em quem você pensava quando aqui sentou, toda unanimidade é burra, não acha?
Que alívio!, pensei, rindo. E lembrei de uma conversa entre poetas bem vivos, que tivera uns dias antes. Onde se falara sobre a grandeza da Poesia. Sobre o seu ir além de picuinhas, além dos rótulos. Sobre o seu abrigar tantas formas e fórmulas, díspares, diversas entre si. Sem julgamento. Sem discriminação. Sobre ser o fazer poético fado e sina. Modo e necessidade de sobrevivência, como o respirar.
— Melhor você ir andando. Começa a chuviscar.
De novo, a sua voz me roubou aos pensamentos.
— Estátua não se importa com chuva, frio e vento, mas poetisa nordestina e viva pode adoecer, se resfriar. Mesmo sendo médica.
Ele tinha razão. A chuva engrossava. Beijei a sua mão e me levantei.
— Obrigada, Poeta. Tornou minha manhã menos só e mais feliz.
— Eu que agradeço. Há muito não conversava assim. Posso fazer um pedido?
— Mas é claro! O que quiser.
— Quando voltar para casa, numa noite qualquer, leia aquele meu livro branco, que seu amigo Oswaldo recomendou, você comprou e nunca o leu.
Nem sei se fiquei vermelha, ou se bege, empalideci, naquele frio. Sei que por dentro, sorri. Touché, again, pensei.
— Leio sim. Prometo. E quem sabe, venho aqui para conversamos sobre ele. Numa manhã de sol. Menos fria.



Márcia Maia

domingo, 12 de setembro de 2010

sem cinzel



folha imagem©


¿

se à pele a
antiga máscara adere
e
qual papel maché
ou poalha de pedra
logo se solidifica
o
que resta é disfarce
fantasia
ou
a vera face eternizada
em escultura

?



Márcia Maia



sábado, 11 de setembro de 2010

como tatuagem



de onzes de setembro faz-se a vida
a fogo e sangue em círculos se inscreve
setenta e três dois mil e um ou num
cinqüenta e cinco anônimo e longínquo
que importa quem relembra quem renega

a dor sabe de cor em quem doeu



Márcia Maia


quinta-feira, 9 de setembro de 2010

a hora antiga


era como um amanhecer
e anoitecia
canteiros de estrelas e tulipas
amarelas meio ao cheiro novo dos jasmins

parecia primavera e era inverno

— era a felicidade —

e eu pensava que era só o seu início



Márcia Maia


terça-feira, 7 de setembro de 2010

uma canção na manhã


há uma canção nessa manhã azul
de antigamente
(a canção não a manhã)
e eu oscilo
hesito entre manter-me inteira
no presente
ou escorregar leve impercebida e
sorrateiramente
ao quarto fechado
onde dormitam em segurança todos os
sentires inacabados

há uma manhã nessa canção
de antigamente
(a manhã não a canção)
e já nem sei o que é passado
o que é presente
mas vem em meu auxílio
o telefone
e embora aveludada e rouca
não é tua
a voz que me procura

há uma canção nessa manhã
nem tão azul
(tampouco de antigamente)
apenas uma canção

e nada mais


Márcia Maia


quarta-feira, 1 de setembro de 2010

tudo muito simples


o café recém-coado
o cheiro de pão quente
com manteiga
mais um gol de ronaldo na tv
e de quebra o céu claro ainda azul

seria uma tarde perfeita
não houvesse o morto na casa
ao lado
e o choro das crianças abafando
o cantar dos passarinhos



Márcia Maia