terça-feira, 29 de junho de 2010

prestidigitação


sou a que se perdeu
a ausente
e embora esteja quase
                     sempre aqui
aparentemente presente
não sou eu a que me vêem
— tu e toda essa gente —
mas o esboço
                a sombra
                           o rastro
ou talvez apenas o reflexo
nas águas turvas de junho
da que fui
quando o inverno era
ainda
uma improvável e longínqua
                     possibilidade



Márcia Maia



sexta-feira, 25 de junho de 2010

bilhete antigo


















para Nando, muito tempo atrás



toque britten  albinoni
pachebel lloyd-weber e mozart
               :
a sarabanda o adágio
o cânon o pie jesu e a lacrimosa
— nessa ordem —
quando eu morrer
e deixe meus pés descalços

             (
 mas nada de flores
 lembre da minha alergia
              )

se puder
ponha bem junto a mim
um radinho
desses que têm gravador
pra eu ouvir
silence stardust e idalina
— tocados por você —
              :
antes de para sempre
adormecer



Márcia Maia


quarta-feira, 23 de junho de 2010

Secreto


Deixa-me dormir um pouco, pedi. Ele sorriu. Beijou-me os lábios e a nuca. Deixou que a mão esquerda repousasse leve sobre meu ventre, a face áspera em minhas costas. E adormecemos, os dois, numa intimidade quieta que nem o tempo, com todas as suas voltas, nos foi jamais capaz de roubar.



Márcia Maia


segunda-feira, 21 de junho de 2010

simetria



solstício aqui
solstício lá

inverno aqui
esplendor de verão do lado de lá

um mesmo sol
um mesmo dia

e a distância a separar calor de alegria

que esta tanto faz
se pulsa aqui

ou se distante exorta a minha alma peregrina

a desistir
a emigrar



Márcia Maia


sábado, 19 de junho de 2010

garimpo


busco a palavra exata
que diga do que penso
            e nunca sinto
palavra-abismo
     de espaços vastos
palavra-nada
— como pedra —
lava de vulcão extinto



Márcia Maia


quinta-feira, 17 de junho de 2010

Convite para dividir uma alegria:










































de tantos e diversos


há algo de rito
na mão que se fecha
em torno de outra
mão ou flor ou vaso
ou faca
e mesmo que hesite
afaga
poda enfeita
ou simples e crua
mata



Márcia Maia

para nos conhecer melhor, visite escritoras suicidas. tenho certeza que irão gostar.


terça-feira, 15 de junho de 2010

classificado



pintei a varanda de verde
e as paredes da sala de um negro-neon

troquei por marrom o bege das cortinas

sem pensar se combinam com o azul-petróleo
das janelas e do corredor

o sofá de um branco imaculado
e o tapete bordô tendendo ao vermelho

(o resto da casa — de portas trancadas
deixei como estava)

para que se acaso tu chegues em busca
do cheiro de noite na pele sob a camisola lilás

ao ver-te daqui estrangeiro

sem um ninho sequer no pinheiro te sintas
tentado a te me descobrir a nos reinventar



Márcia Maia


domingo, 13 de junho de 2010

cumpleaños



alongam-se os caminhos percorridos
encurtam-se os ainda a percorrer

no mais é passo e estrada
estrada e passo

até que mais não haja passo
que faça alguma estrada acontecer



Márcia Maia


De detalhes, faz-se a sina



nós, no natal de 2009


























Era 13 de junho: dia de Santo Antônio e São Fernando Pessoa. Santos portugueses. Dia, também, de Santo Yeats, irlandês. E ali, quase ao meio dia, com a sina traçada, eu nascia. Aos berros. Machucada de tempo perdido no trabalho de parto. Devia ter sido uma cesariana. Não foi. Ela é forte, a mãe, aguenta. Também teve que ser forte, o bebê: eu. No corredor, o pai ao telefone — jurássico — berrava: " É uma menina, linda, igual ao pai!" Que era lindo por dentro, o pai. E lá se ia aos poucos, completando-se-me a sina. Faltavam os sinos: tocaram ao meio-dia. E garantiram meu quinhão de alegria.
O tempo passou: tanto. Os caminhos — muitos — quase sempre pedregosos, com algumas pradarias. ( Lembram dos sinos?) Ou melhor, com algumas beiras-de-mar, que nunca gostei do campo. Que, aqui, se diz interior.
Sina cumprida, eis-me aqui: vivida de amor e poesia. Nem sempre felizes, amores e versos, sempre me valeu a pena vivê-los. Valem-me ainda. Como o pai, médica. Um tanto descrente e cética. E paradoxalmente, certa de que "tudo vale a pena, se a alma não é pequena", como escreveu um dos meus santos padroeiros.
Entre bruma e meio-dia, ostra e pássaro, pedra e vento, talvez, mar: assim eu sou. Uma mulher. Nada além. E como disse outro dia num poema, isso me encanta e basta.



Márcia Maia

sexta-feira, 11 de junho de 2010

sideral



quando toco o céu
na tua boca um mar
de estrelas brota em mim


Márcia Maia


segunda-feira, 7 de junho de 2010

Miudezas


A torneira sem água. O telefone mudo, mas com linha. Segunda-feira de contas a pagar. A Lua em Escorpião. A falta de paciência. O mal-estar.Uma canseira. E a sensação de estar overeacting. Superestimando. Fazendo drama, assim, em bom e claro português. Pra completar, Nana canta: ah, a solidão vai acabar comigo... Ah, saco! Bem feito! Quem mandou se apaixonar?



Márcia Maia

sábado, 5 de junho de 2010

crepuscular



brusco e róseo
no asfalto molhado — o grito

(sangue salpicado no vestido
e um buquê desfolhado na lata do lixo)



Márcia Maia


quinta-feira, 3 de junho de 2010

corpus christi


depois
do amor adormecido
teu

é esse
o corpo que venero
hoje

de homem — sem deus



Márcia Maia