sábado, 2 de outubro de 2010

O Passageiro da Chuva


Desligou a televisão. A chuva aumentara. Não fora uma boa idéia rever aquele filme numa noite como aquela. Le Passager de la Pluie. Mas não resistira ao apelo das lembranças de quando o vira a primeira vez. E à música que adorava, além da cena final, sempre irresistível. Checou todas as janelas. E deixou-se ficar um pouco mais olhando a chuva.
O ruído do ônibus parando a despertou. E um arrepio lhe percorreu o dorso e a nuca. De camisola, pés descalços, verificou novamente as janelas. Nunca vira uma casa com tantas janelas como a sua, pensou esboçando um sorriso. Checou as portas. Fechadas. Devia ser culpa do filme aquela inquietude, quase medo, que sentia. Já na escada, percebeu que esquecera a luz acesa na cozinha. Desceu. Preferia deixar acesas as luzes da varanda e do corredor.
Foi então que o viu. Alto, capa de gabardine caqui entreaberta, camisa levemente azul sobre a calça jeans escura. Olhos imensos, brilhantes e negros como os de um falcão, a despeito de ser quase ruivo. Quis correr mas não conseguiu mover as pernas. Imobilizada entre o pânico e o fascínio.
Ele não a estuprou, como no filme. Ao vê-la, pegou uma faca em cima do balcão, e olhando-a nos olhos, enfiou-a até o cabo, dois centímetros à esquerda do externo, à altura exata do coração. Nada disse. Ela, tampouco, gritou. Sequer lembrou do filme. Viu apenas a chuva escorrendo à janela. E teve a impressão de ouvir uma canção francesa antiga meio ao ruído de uma vidraça se estilhaçando, pouco antes de um azul escuro e imenso toldar-lhe os olhos. Pouco antes de deixar partir a vida, manchando de escarlate o mármore imaculadamente branco do piso da cozinha.



Márcia Maia


2 comentários:

Dhênova disse...

Envolvente, instigante, a la Poe... gostei demais.

Abraço.

Manuel Veiga disse...

o irrestivel perfume do crime...
adorei

beijos